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Divórcio - Ricardo Lísias (2013)

Como narrar uma dor lancinante? 

Por mais pueril que seja o tema da separação entre um casal romântico, há sempre uma peculiaridade no fim. No livro Divórcio, de Ricardo Lísias, a dor física atravessa a sobrevivência do narrador após a separação: falta de ar, ausência de apetite, insônia, permeiam um corpo em carne viva. Afinal, um corpo sem pele não consegue se proteger. O personagem Ricardo vagueia pelas ruas de São Paulo à espera de acolhimento, mas quem triunfa é a indiferença. Assim, utiliza esse corpo ferido como matéria-prima literária.

A obra ultrapassa o binômio bom moço versus mulher desleal. Não, não se trata disso. O livro elucida o abismo entre uma mulher ambiciosa e um homem disciplinado na vida amorosa. Sabemos das manias, paranoias e o modo desajustado e até inconsequente de levar a vida do narrador. Ele rompe com a expectativa pequeno burguesa a qual sua ex-esposa era devota e filiada. Há como vislumbrar um futuro? O clichê sobre compatibilidade entre opostos é uma grande farsa, mas, afinal, quem está imune a ambiguidade do Outro?

Depois de quatro meses de casamento Ricardo se depara com diário de sua ex-esposa. Lê tudo de uma vez só. De repente o ordinário torna-se estranho: com quem me casei? Tal questionamento perfura o juízo do personagem. Há uma passagem reveladora de tamanha truculência: “19 de julho de 2011: imagina eu tendo um filho com o autista com quem casei. O Ricardo é patético, qualquer criança teria vergonha de ter um pai desse. Casei com um homem que não viveu.” Não tarda para que a leitura do diário se converta em um trauma aniquilador. 

Não se trata de uma narrativa infantil, o que se tem é um mar de memórias agonizantes, traumas, inquietações. Os títulos dos capítulos em quilômetros remetem a participação do personagem na Maratona São Silvestre. A corrida torna-se um subterfúgio diante do abismo do divórcio. O narrador é ansioso por traçar um mapa do acidente de sua primeira morte: o divórcio. A busca por uma rota racional é mais nítida nos capítulos finais; ordenar a confusão interna apraz o narrador agonizado pela dor. Há múltiplas interpretações sobre a narrativa, contudo, permito arriscar que dentre tantos adjetivos um seja incabível: superficial. Penetramos em um sofrimento que oscila entre o contrassenso e o risível. 

O acerto da obra está em fugir do conservadorismo e da sobriedade dos romances clássicos. Ricardo é colérico e sagaz, não se amedronta em desnudar a hipocrisia do jornalismo brasileiro que se reflete nas atitudes de sua ex-esposa. O despudor nas descrições sexuais demarca a personalidade de um personagem fiel aos seus desejos. O excerto da canção "Circo" de Beatriz Azevedo elucida a postura de Ricardo: “eu vou girar que nem pião / no alto do arame / sem rede de proteção / eu vou cair no chão / e dar vexame.” A fronteira do ridículo não o apavora, mas, por vezes, o faz recair em um vitimismo raivoso quando o Outro não corresponde seus anseios.

Nessa exposição desmedida adentramos em uma dúvida clássica: é autobiografia ou ficção? O narrador brinca o tempo todo com o leitor; um exemplo disso são as fotos da infância do autor dispostas ao longo do livro as quais estão mais para confundir do que para esclarecer tal indefinição. Um leitor curioso descobrirá facilmente que Ulisses de James Joyce, mencionado no romance como um dos itens recolhidos por Ricardo assim que deixa o apartamento do casal, é uma obra importante para o escritor Ricardo Lísias.

Não é difícil desbravar as intersecções entre o autor e o narrador, mas para adentrar no romance é melhor seguir o aforismo de Roland Barthes: devemos matar o autor. A cisão entre autor e narrador deve nortear a leitura. Contudo, antecipo haver apenas uma verdade incontestável dita repetidas vezes ao longo do livro: a Notre Dame é um patrimônio histórico da humanidade.

"Divórcio"

Autor: Ricardo Lísias     Editora: Alfaguara   Páginas: 240 páginas

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