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A metamorfose - Franz Kafka (1915)

No meio do quarto tinha um inseto

O título é uma paráfrase do poema "No meio do caminho" de Carlos Drummond de Andrade. Talvez por estar imersa no contexto modernista, assim que terminei a leitura de A metamorfose lembrei de tal poema. Quando reli a segunda estrofe, a alusão, até então confusa, fez todo sentido: “Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas.” No contexto kafkiano, tais versos evocam o choque da família e do gerente de Gregor Samsa diante do anúncio do grotesco.

Kafka não prepara o leitor, lança a questão da metamorfose num rompante brutal. Aos desavisados, leia com calma e atenção, apesar de que muitas vezes se torna quase obrigatório voltar algumas páginas para se ter confirmação do andamento da leitura. Afinal, a novidade é bizarra em si, Gregor Samsa tido como esteio financeiro da família, amanheceu metamorfoseado em um inseto. Asco, estranheza, assombro, inconformidade, transitam as sensações dos espectadores – e dos leitores. Tudo isso se dá nas breves linhas iniciais, tido como um dos começos mais famosos da literatura mundial.

A imaginação é fundamental para vislumbrar o inseto o qual Gregor viu-se transformado. O livro é curto, a linguagem é prosaica e objetiva, contudo, a leitura é indigesta. Há quem consiga imergir totalmente na obra, outros precisam de pequenas pausas e respiros para seguir adiante. Um dos efeitos do realismo kafkiano.

Depois do imbróglio preliminar, tem-se um amontoado de dúvidas, pois não se sabe muito sobre a vida de Gregor Samsa antes de sua transfiguração. Aos poucos o narrador lança algumas informações sobre o personagem principal; trabalhava como caixeiro-viajante, tinha um ofício extenuante e dormia pouco. Além disso, vivia em uma névoa de hipocrisia e silenciamento inerente a qualquer trabalho. Algo curioso é a normalização do absurdo, ou melhor, não se tem grandes questionamentos acerca da metamorfose. Como alguém amanhece um inseto? Não há comoção e investigação sobre a origem de tamanho infortúnio. Mas, apesar de tamanho mal-estar Gregor acredita no porvir: “ainda não renunciei por completo à esperança”.

            Não tarda para que a angústia se sobressaia, o fator econômico agora o perturba: “mas como seria agora, se todo o sossego, todo o bem-estar, toda a satisfação chegasse assustadoramente ao fim?” A nova realidade é carregada de preocupação e rejeição. A princípio, a irmã, Grete, assume o protagonismo dos cuidados e mostra-se preocupada com as novas necessidades do irmão na condição de inseto. Gregor Samsa tinha planos de um futuro grandioso e digno para sua irmã como violonista. Contudo, a usurpação de seu corpo humano gerou um vislumbre trágico não só para si, como para seus entes familiares. Tamanho fardo não foi suficiente para gerar uma comoção menos penosa, pelo contrário, desnudou a renúncia que todos faziam da presença do inseto. A fronteira entre o familiar e o estranho torna-se incessante, daí suscita a imprecisão: adaptar-se a nova condição ou confiar no retorno do passado?

A perplexidade deteriora qualquer vislumbre de melhora, o que predomina são lampejos de nostalgia e consciência de tamanha desgraça: “Quem nessa família sobrecarregada e exausta tinha tempo para se ocupar de Gregor mais que o absolutamente necessário?” Desde que foi metamorfoseado em inseto sente-se desabrigado no seu núcleo mais íntimo, pois é tido como um tormento insistente, a ponto de ser aniquilado. Há esperança, mas não para Gregor Samsa. Esse mal-estar seria uma metáfora para uma doença grave, depressão ou um pensamento onírico? As possibilidades são vastas e, no fim, evidenciam nossa pequenez perante o mundo e ao outro, e como isso influencia a compreensão que temos sobre nossa identidade. A metamorfose exprime uma contradição irresoluta e não há quem saia ileso dessa experiência.

"A metamorfose"

Autor: Franz Kafka       Editora: Companhia das Letras   Páginas: 104 páginas

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